AMARELO DE FOME VERDE DE MEDO





AMARELO DE FOME
VERDE DE MEDO


500 e tantos anos de colônia


Segunda edição, 2011.


ANOS VERDE - AMARELADOS.

Volto aos anos sessenta.

Sopravam ventos de liberdade. Milhares de jovens se uniam e marchavam juntos para denunciar as mazelas do individualismo competitivo e bélico do sistema capitalista. Caminhando e cantando eles queriam paz, e queriam amor.

Enquanto isso acontecia nas ruas de São Francisco e de toda a Califórnia, nos gabinetes de Wall Street banqueiros judeus tramavam um golpe de estado para derrubar o presidente John Kennedy, porque ele iria acabar com as duas mais lucrativas guerras dos banqueiros: a guerra dos Estados Unidos contra o povo do Vietnam e a guerra deles no Federal Reserve contra o povo e a economia dos Estados Unidos. 

No dia 22 de novembro de 1963, o presidente John Kennedy foi assassinado e logo depois o seu irmão e provável sucessor Robert Kennedy. E nada foi apurado sobre esse golpe de estado dado com muita competência, porque haverá sempre um politico de fachada “governando” o país “democrático” de fachada e os banqueiros, como sempre continuarão mandando em quem governa.

A nova política de estado dos banqueiros judeus nos Estados Unidos escolheu o Brasil para ser a primeira vítima no novo terrorismo do capital,

Em primeiro de abril de 1964, usando o dinheiro, o serviço secreto e o aparato militar norte americano, os banqueiros judeus derrubaram o presidente João Goulart, eleito pelo voto popular, livre, direto e universal, que havia acabado de sancionar a lei votada no Congresso Nacional, que controlava a remessa de lucros para o exterior e começava a implantar a reforma agrária, a reforma política e outras reformas estruturais de base, essenciais ao desenvolvimento e autodeterminação do Brasil.





Manipulando as forças armadas brasileiras, para torturar e assassinar os heróis insurgentes do país, Washington impôs o fim de qualquer compromisso social, econômico e cultural do Brasil com a sua população.

Isso nos faz lembrar que o Brasil veio ao mundo para ser colônia. Desde a primeira invasão estrangeira, há quinhentos e poucos anos, segue o seu destino de vassalo, servindo a diversas nações imperialistas.

País acorrentado no atraso, o progresso escrito em seu auriverde pendão sem esperança, nunca chegou ao cobiçado pedaço de terra brasileira.

Contra esse fatalismo da espoliação, não foi suficiente a vontade e o sacrifício de Tiradentes, de Brizola e de João Goulart. Sempre um ambicioso político, submisso aos interesses imperialistas de outras nações, ocupará a presidência da república, ou um general capacho - a serviço de alguma ordem estrangeira - fará as vezes de capitão do mato dos ricos senhores da plutocracia global.

Foi assim, é assim e assim será.

Volto ao ano 1964.

Logo após golpe militar de primeiro de abril, cumprindo ordens superiores, a ditadura militar permitiu que fosse burlada a nova lei de remessa de lucros, com simulacros de operações de credito no exterior, transformando operações legalmente restritas de remessa de lucros em livre pagamento de juros da dívida externa, afundando o país em empréstimos, que fizeram a fortuna repentina de empresários, de políticos propineiros e de oligarcas provincianos.

Essa manobra entreguista, aumentou a concentração de renda no país, instituiu a demissão imotivada, provocou desemprego em massa, arrochou salários, levou o povo à miséria, para aumentar ainda mais o lucro e o poder das grandes corporações estrangeiras e elevar a dívida externa brasileira de 3 para 150 bilhões de dólares, em menos de 10 anos.
O povo brasileiro tem memória curta, como deve ser a memória de todo povo colonizado que se preze. E, como todo povo colonizado que se preza, o povo brasileiro tem a cara e a cor de sua bandeira:


amarelo de fome
verde de medo.

Volto ao ano 64, revivendo em versos o que vi e vivi, em memória de todos que lutaram contra a ditadura militar do capital estrangeiro e deram suas vidas por um sonho, como lutaram, sonharam e morreram Brizola, Goulart, Marighela, Lamarca, Tiradentes e todos os outros mártires da resistência à espoliação do povo brasileiro.


Itaparica, 1º de maio de 1994.





















DEDICATÓRIA.


Depois de tanto tempo
com você
eu mudei tanto.

meu coração sem nada
no coração
foi parar no bucho.

o amor
eu não sei do amor
a cada encontro.

a cabeça cheia de ansiedade
dentro do peito vazio
desce pelo pescoço
que se encolhe de agonia.

o que digo
não significa nada;
significa nada não.

o sangue
que corre em minhas veias
é o sangue de meu irmão
o mesmo sangue grudado na sua mão.

valerá a pena
você me ameaçar
com tortura e prisão?

Valerá a pena
você atacar
minhas palavras inócuas
com o seu canhão?

a
você
com o amor
que eu tinha no coração.








AMARELO DE FOME
VERDE DE MEDO



Viver, de 1500 para cá.



        
                 “Líbranos de aquel que nos domina en la miséria
                  tráenos tu reino de justicia e igualdad
                  sopla como el viento
                  la flor de la quebrada
                  limpia como el fuego el cañon de tu fusil

                  hágase por fin tu voluntad aqui en la tierra
                  danos tu fuerza y tu valor al combatir
                  sopla como el viento la flor de la quebrada
                  limpia como el fuego el cañon de tu fusil”

                                                             V. JARA.


1

Pelo leito de um rio seco
como estrada que afundou
de tanto se passar

prosseguiremos sem paz
a nossa marcha

todos iguais como inimigos

e unidos como animais.




2

Não posso usar a linguagem articulada
nem o polegar oponível aos outros dedos
acompanho o que sou em pensamentos
lembranças de mim, coisas assim
e meus segredos.

Sou a pedra presa à sua calçada
sou estrada
você pisa e passa

eu permaneço
estrada
em meus segredos.




3

Nem luz nem vento
no ar todo escuro.

Os movimentos de sombras no silêncio
lembram pessoas correndo
em noite que não passa.

o que existe dentro de mim
é uma ideia de frio

um frio permanente
na noite que não passa

e a cama molhada de suor.





4

Passo a passo
afundo o passo
e furo o chão

e na linha sinuosa
de meus passos
vou tecendo a vida
bordando furos pelo chão.

Seguindo acostumado
eu creio e crio
por acaso
o tecelão.

Faço a vida
e faço a morte
a vida feita

a minha vida feita
e recriada
a vida à morte costurada

e minha vida,
como pássaros em revoada,
segue os meus passos
sobre furos bordados pelo chão.




5

O medo
é a morte
que não existe
nem existiria.

Ninguém vive
nem morre
a morte
que o medo fantasia.






6

Não temas inimigos
que não temos

Nesses dias de verão
deixe o vento do mar
invadir a nossa sesta

deixe a porta aberta

os pobres comerão restos de nossa comida
assassinos atravessam portas fechadas.




ATO INSTITUCIONAL NÚMERO CINCO.
de 13 de dezembro de 1968.

Art.1 - São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional.

Art.2 -  O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.

Parágrafo primeiro. Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas na Constituição ou na Lei Orgânica dos Municípios.

Parágrafo segundo. Durante o período de recesso, os Senadores, os Deputados federais, estaduais e os vereadores só perceberão a parte fixa de seus subsídios.

Parágrafo terceiro. Em caso de recesso da Câmara Municipal, a fiscalização financeira e orçamentária dos municípios que não possuam Tribunal de Contas, será exercida pelo respectivo Estado, estendendo sua ação às funções de auditoria, julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos.

Art.3 -  O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição.

Parágrafo único. Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam, respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixados em lei.

Art. 4 - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos, cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Parágrafo único. Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos, determinando-se o “quorum” parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.

Art.5 -  A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em:

             I – cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;

             II - suspensão do direito de votar e ser votado nas eleições sindicais;

             III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;

             IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:

                   a) liberdade vigiada;

                   b) proibição de freqüentar determinados lugares;
       
                  c) domicílio determinado.

Parágrafo primeiro. O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados.

Parágrafo segundo. As medidas de segurança, de que trata o item IV deste artigo, serão aplicadas pelo Ministro da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário.

Art.6 - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.

Parágrafo primeiro. O Presidente da República poderá, mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregados de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.

Parágrafo segundo. O disposto neste artigo e seu parágrafo primeiro aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.

Art.7 - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo.

Art.8 - O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.

Parágrafo único. Provada a legitimidade da aquisição dos bens, far-se-á sua restituição.

Art.9 - O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas “d” e “e” do parágrafo segundo do artigo 152 da Constituição.

Art.10 - Fica suspensa a garantia de “habeas corpus”, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

Art.11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.

Art.12 - O presente Ato Institucional entrar em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário.


SIGNATÁRIOS DO AI-5: Arthur da Costa e Silva; Luis Antonio da Gama e Silva; Augusto Hamann Rademaker Grunewald; Aurélio Lira Tavares; José de Magalhães Pinto; Antonio Delfim Neto; Mário David Andreazza; Ivo Arzua Pereira; Tarso Dutra; Jarbas G. Passarinho; Márcio de Souza Melo; Leonel Miranda; José Costa Cavalcanti; Edmundo de Macedo Soares; Hélio Beltrão; Afonso de Albuquerque Lima e Carlos Furtado de Simas.

- QUE A ETERNIDADE NÃO SEJA UM DOI-CODI PARA SUAS ALMAS.





7            A I - 5

Vendo
cair sem nosso apoio e sem defesa
pela tortura, pela bala
e pelas palavras do artigo quarto

homens
sobre os quais não pesam suspeitas
ou provas de delito contra nós
mas o pendão surrado e esquecido
da honra e da coragem

e vendo crescer impunes
sem vergonha e sem bandeira
os vendilhões do povo e da pátria
que a pátria abriga em seus canhões
e na letra morta do artigo oitavo

sigo o povo acovardado
e vou pisado
mas consolado
não em ser aflito
e por estar faminto

mas por ser hoje
apenas um em cinco
um opositor
um irresponsável
um contestador apaixonado por versos
e poeta
de má fé, má fama e mesmo assunto

um profeta condenado a guerrilheiro.





8            LAMARCA

Meu cachorro valente se chama Lamarca
porque padre, pastor, igreja, senhor
pátria, cruz, pires, medeiros
magalhães, sarney, maluf, dinheiro
dau, golbery, banco, banqueiro
e força armada
significam nada.

E Lamarca é um som imaginário
como grito de vida de pássaros
que atravessam nuvens
e sobrevoam os mares.

E eu só tenho coragem
para lembrar Lamarca

e para chorar Lamarca
e para gritar  L A M  A R C  A

que viveu e morreu lutando
porque eu me fiz
e fui feito cachorro covarde
por coisas e nomes
que significam nada.




9        VLADO

Você diz
que eu sou das trevas
mas a luz
que você acende contra os meus olhos
ilumina meu rosto
clareia meu caminho

os choques que recebo
aumentam minha energia

dentro de mim
queima um facho imune:
a minha alma que pulsa
como uma tocha ardente

ofuscante
como um clarão nos olhos

iluminante
como a luz do dia.

               São Paulo, 1975.





10      MARIGHELLA.

            (Mateus, 10,34-36)

Não venho trazer a paz
a paz que se traz eu não tenho
venho com minha espada
encontrar povo guerreiro
separar toda família
incendiar o mundo inteiro

para fazer tudo de novo
um mundo sem ódio, sem guerra
sem donos de gente e de terra
sem escravos e sem patrão
onde viver seja o caminho
de trocar nosso carinho
seguindo em união
com um Deus que seja amigo
com perdão e sem castigo
e que a ninguém falte abrigo
nem trabalho, nem chão.

venho com minha espada
e com toda nossa razão
tirar o rico da cama
separar o pobre da lama
e o medo do coração.

Não tenho medo da luta
por maior que seja o perigo
no perigo tenho cuidado
medo não anda comigo.

E quando a morte chegar
vai me achar bem acordado
ou dormindo já descansado
depois de muito lutar

mas nunca vai me encontrar
calado para injustiça
sofrendo de solidão
ou de olhos arregalados
cabelos bem penteados
morrendo por um tostão.

Não tenho medo da morte
maior do que a morte é a vida
pior é viver explorado
uma vida inútil e sofrida.





11

Eu te trago
amigo
o que tenho
e o que sou
comigo

o derradeiro nada
que escapa
ao meu sentido.





12

O poder do mar
é a própria força

o poder dos fortes
é como o mar
que destrói conforme o vento

o poder dos justos
é como o sol
que ilumina, aquece e brilha
acima das tempestades
além da noite escura
e é estrela
na noite de outros mundos

o poder dos fracos
é a força armada
é o estampido mortal de um fuzil.






13  OREMOS

Obrigado Senhor
ou qualquer outro divino valor
a que se deva agradecer
por eu não ter emprego
nem ter sossego

e por eu ser
pobre
faminto
e bêbado

e ser
o trapo
que a polícia suja
e o poder explora.

obrigado
por eu ser negro
e alvo
da cobiça

Obrigado Senhor
por eu ser igual a tantos

obrigado
enfim
por todos nós
esses vossos tantos
que apenas fomos condenados
por vós
a vir a ser
os miseráveis
o que já somos.






14

Que minha mão
desarmada
receba esta hóstia

que meu coração
prisioneiro
abrigue seu Cristo

que minha mão
abençoada
encontre meu peito

e liberte meu lado sem coração.






15

Ave Maria
mãe de pecadores
escrava de opressores
refúgio dos oprimidos

rogai por nós
porque nossas palavras
ameaçam a fúria dos canhões
e nossos corpos
são vulneráveis ao cativeiro

rogai por nós agora
e na hora da morte
ensina-nos a morrer

Ave Maria
cheia de graça
dai à nossa vida inacabada
o mesmo fim de prece interrompida

vida e prece proibidas
e reprimidas por nós
no amém
a tudo.





16

Tenho fome
nada mais eu tenho

para sobreviver
só me resta entregar
o que tenho como meu
mas não alcanço
não sustento
nem mereço

ao primeiro demônio
interessado
ofereço

minha alma
por qualquer preço.






17

Pelo sinal
da Santa Cruz
ficai em nós
Deus
nosso Senhor
e em nossos inimigos.







“O que falta ao Brasil é a violência popular de base, que prenuncia as mudanças em um país”.
                                                                          LINA BO BARDI






18      ARAGUAIA

Trazendo comigo
fatos
e antepassados esquecidos
venho só
com meus fantasmas

entre mim e a eternidade
a vida e a morte
ungidas na mesma sorte
vêm comigo

As estradas enfeitadas
e construídas
de cadáveres putrefeitos
corpos jovens e velhos
já desfeitos
modificando o sabor
e o aroma
dos velhos campos calcinados
que eu engolia.

Se ao menos a juventude
tivesse sido fuzilada num jardim
as flores receberiam de bom grado
todo aquele esterco humano
e seu perfume ameno
viveria daquele sabor profano
que eu cuspia

Se eu pudesse ser urubu
não fingiria ser o que não sou
seria em meu corpo minha cor verdadeira
e faria das entranhas
satisfeito
o sepulcro temporário
e imperfeito
desses homens condenados ao destino
que o meu medo lhes reservou


e como a vida se repete
depois de mim
soldados passarão marchando
e fuzilando
a cada instante pelo chão
excrementos de urubu
que sorrirão.
             


19

Seja como eu
um ateu cívico
não acredite em reinos
nem em monarcas
com ou sem soberania

não acredite em ministros
em políticos
tecnocratas
nem em índices de governo
mas reaja com simpatia

Seja um discreto
violador
de hinos e bandeiras
cante samba nas paradas
faça carnaval a vida inteira.

E se você for dado
ao cheiro de uma fruta
e gosta de esfregar
o aroma em suas narinas 
faça sempre isso em casa
como se estivesse
ao pé da árvore
na beirada de um regato
ao sabor da brisa
sibilante
ou murmurante
como na linguagem
dos regatos
de poesia

Ou seja bem ousado
imagine tudo isso
plantado em terra sua
(e não na do cigarro)

Isso tudo
para não ficar por aí
curtindo o sabor das coisas
num tremendo cercado de cimento
sob a pressão
dos apelos 
de mendigos
de políticos
de anúncios
e de letreiros

e do barulho
das boiadas mecânicas
em atravancado estouro
rotineiro

Eu sou assim
não me arrependo

Vivo e encaro
minha miséria
com profético desdém

faça isso você também.

Não viva como os crédulos
uma vida angustiada
expelindo do bucho
um hálito azedo de azia e álcool.

Faça como eu
conserve em sua boca
um odor saudável
e com seu sorriso mais sincero
ofereça
sem receio
beijos à sua mulher
no sabor inquestionável
inconfundível
imperial
do mais puro e genuíno
creme dental
multinacional

que solta
tinta da rosca
e suja a pasta
de preto.






20   HOMO SAPIENS ?

Sábio é o boi
que vai do pé ao topo
a serra inteira
sem subir ladeira

Besta é o povo
que arma o estado
o governo e o soldado
a soldo estrangeiro
e se desarma
por inteiro.






21

Quando nosso rosto abatido
se encontrar
no caminho de volta
de um dia acabado

e do outro lado da rua
carros acesos
piscando
freando
batendo
gemendo
passarem caudalosos
e vazios
como um rio de sombras
sorria

você verá
todos estarão comportados
ninguém gritará a dor reprimida
a sofridão controlada

seremos apenas
passageiros cansados

Nosso viver assim
disfarçados de gente
nos sustenta
e estamos de pé

não importa
o quanto nos custa o cansaço
nem valemos
o que nos rende o cansaço

pela razão que nos falta
sorria

nesse ônibus apinhado de gente sombria
nesse peso de tédio e agonia

preciso morrer esse trapo
para poder renascer o que sou
em você

num derradeiro instante
de paz e pecado
sorria.





22

Hoje morreu um homem
na Praça da República

aposentado

nome
idade
endereço ignorado
tudo anotado
no formulário
da polícia.

cobriram o corpo com jornal.

hoje morreu um homem 
na Praça da República
como morreria a pátria soberana
se fosse viva
e fosse povo
ou se não fosse fantasia.





23

O consumo febril
consome
o nome
e o rumo.

a inflação
essa louca irmã
do lucro fácil
e a gula
engolem o mísero salário
e o ócio
do operário.

a honra morta
a seca na horta
comem o plantio.

o enfermo fede
ferve
se agita
e salta no vazio.

Sobressalto !
temores !
nas ideias e nas palavras
há suspeitas de ciladas

s u b v e r s ã o

a força armada
teme
a própria espada
treme
ao golpear o nada.

o cordeiro muda
a cena muda
a vontade faz

um homem novo
letargo povo

cordeiro nunca mais.






24    VELÓRIO

Rondam a morte as formigas
as moscas bebem orvalho
na flor que foi colhida de manhã.

diante do cadáver rígido
no instante
em que a vida sintetiza o raio de sol
(que invade a penumbra por uma fresta)
e faz brilhar uma gota de orvalho
na flor que foi colhida de manhã

eu conclamo
intimamente
o vozerio e o converseiro
a um perdão e a um louvor

perdão para esse tempo escuro, natimorto
e louvor aos combatentes mortos nesse tempo.

PS. Anistia é para combatentes.
      Torturador não é combatente.
      Torturador é covarde.
      Lugar de torturador é na cadeia.    






25          LAVRAS DIAMANTINAS
                                 
                                  “Dizem
                                          que, em alguma parte,
                                     parece que no Brasil
                                               existe
                                     um homem feliz.”
                                                 V. Maiacovski.

De onde vêm vocês que trazem a guerra ?
do onde vêm vocês
homens
que invadem a paz de nossa terra ?

de onde vêm vocês
com mísseis atômicos
dragas, caminhões e escavadeiras ?

de onde vêm vocês
que compram o voto de senadores e deputados
e compram a proteção dos fuzis
de nossos soldados ?

e de onde é esse frio molhado
que meus olhos negros derramam
em seus olhos azuis ?

de onde vêm vocês
homens estrangeiros
ferindo o chão de nossa casa
para arrancar do leito do rio
e do alto da serra
a riqueza que a vida
guardou no coração da terra ?

Para onde vão vocês
com nossa riqueza
e com tanto sangue arrancado
de nossas feridas
nas feridas da serra ?





DE VENTO EM PROA

Conviver, de 1500 para cá



          
        Minha terra - mãe, minha pátria

                      “teu nome ousei cantar
                        perdoa, ó musa,
                        perdoa o teu cantor
                        dignos de ti não são os meus frouxos hinos
                        mas são hinos de amor.”
                      
                                                Alexandre Herculano.




26

Sonho
livre e lento
ando alegre
sopra o vento

Sonho
nessa direção incerta
tudo é novo

é lindo o novo
que desconheço.



27

Embarquei
numa estrela
em ascensão

queimei
a mim mesmo
de ilusão

mas naveguei

pelo espaço enfim
astronauta de mim
naveguei

naveguei
vagando
naveguei

navegando
sem parar
eu ando

sem chegar a tempo.





28

O espírito de tudo
abandona o tempo
e vai sonhar a estratosfera

os fatos de agora
são um conjunto vazio

para o poder armado
ser o incerto crítico do passado
o tirano do superado
o superego no cio.





29

Há paz nos campos inundados
e nos desertos

nos braços retorcidos da caatinga

e há paz nos formigueiros
cevados para o inverno.

No rosto dos homens calados
no caminhar dos retirantes
no silêncio do boiadeiro
nos operários
nos pequenos empresários
na mesa ociosa
na barriga vazia
há apatia.

Um dia
haverá união
no coração dos homens calados
na volta dos retirantes
na marcha dos operários
no galope dos boiadeiros

e paz

nos campos redimidos
e nos braços entrelaçados
em abraços na caatinga.




30            A FOME

Santa Maria da Vitória
a noite calma tece
sobre as águas escuras do seu rio Corrente
um manto negro, transparente
onde se alongam as luzes derramadas das ruas,
das praças e das casas adormecidas no silêncio.

as luzes estendidas sobre seu manto negro
são caminhos acesos
flutuando imóveis sobre águas que caminham,
caminhos flutuantes, acesos,
todos na direção de meus pés,
mergulhados na beira de seu manto.

Esquecidos à margem do seu rio
meninos engraxates descansam.

Num instante
pequeninas mãos se elevam
suplicantes
amigas
e recebem todas elas
migalhas do pão repartido
pelo menino que chega
com um pedaço de pão

crucificados no nosso abandono
comungando migalhas do pão repartido,
na sonoridade farta de fome e alegria,
crianças prolongam
na conversa mastigada
a primeira refeição daquele dia.





31      A MORTE DE LAMPIÃO

Evém no céu a barra do dia evém
Evém no céu A barra do dia evém

Barra do dia
não é barra de saia
barra de saia é borda
é beira dobrada no fim
a barra do dia
é a luz que me acorda
do medo que sinto de mim.

Barra do dia
não é barra de praia
barra de praia é ribeira
é beirada aberta
na beira do mar
embaixo da pirambeira
é porta de entrada
é porteira

a barra do dia
é luz espalhada
na beira de mim
no céu da manhã
a barra do dia
é começo e é fim

e o fim
é um dia
de luminosa brandura
um sol espelhado na sorte
aurora da hora da morte
o apogeu de toda loucura

e a morte
é um outro sentido
é a porta fechada
que a gente atravessa
para ver uma vez
o sertão
molhado e florido

florido de saudade

num dia que não tem fim

do chão brotando justiça
e das flores liberdade.

        (com ajuda de Bráulio Villares Barral)
      



32

Para os afortunados
há o trabalho sem fruto

e a vontade oca de continuar vivendo

Esse viver que nos dá vontade
é adiar
dia-a-dia
a morte

pela fome
pelo tempo
pela bala

ou pela prisão
que nos espreita e espera.





33

Desgovernados na miséria
nós
os mendigos deste país
somos gente da dor

temos a dor que ficou
e cantamos pelos que morrem

temos a nossa dor
e sorrimos para os que cantam

dor ainda temos
e teremos
bem sabemos
e sorriremos
e cantaremos

e seremos cada vez mais







34  INFLAÇÃO

é tanto tomate
que o molho descongelado
comeu com coentro
o pirão expurgado
de nossa panela.

olhe o rato
feche a porta
abra a janela

salve o vento
e o sol

viva a favela !



35

Velha maltrapilha
faminto alimento de formigas

Fale-me
de uma terra
rica, enorme e soberana
e de um povo
que não seja pobre
reinando sobre essa terra.

Fale-me de leis
que aplaquem
o ódio
e de justiça
que não tenha dono.

Fale-me de um povo
que ria
que cante e dance
como o meu
e que não seja condenado
a viver como indigente.

Fale-me de uma terra
onde a dor
só exista no presente.

Eu quero falar a palavra
liberdade
e ouvir
sem sentir a força
de um nó
atado à ideia
pesando sobre a palavra
(que precisa soar leve,
livre e sonora,
como se tivesse sentido)

Ensina-me
a música desse povo.

Eu não quero ser só escravo irmão
de um povo escravo.

Fale-me
de uma terra
rica, enorme e soberana
e de um povo que não seja pobre
reinando sobre essa terra.

Eu quero cantar o hino desse povo.
Eu quero ser povo nessa terra.

                            17.07.74





36

Infelizmente
todos os empresários
estrangeiros falam
influentemente
um português.





37

O índio colonizado
faz o batom importado

que pinta a cara sem rosto
do guerreiro maquiado

nas caras lavadas
pinta anemia

nas caras pintadas
barriga vazia.

a lança afiada do colono
cara rosada
não é partida
e corta o peito aberto
do índio campado.

Guerreiros sem luta
sem voto, sem meta

índio coitado !





38

A espera
nasceu num banco de repartição pública

é velha e usada
como um processo antigo
não prescrito

a espera vive em nós
e nos deixa o íntimo
como uma prece
para ser absoluta numa fila de banco
ou do INPS

onde ela é breve ou longa
como toda espera
e é silenciosa
confusa ou ruidosa
(pode ser até anarquista)
ameaça, mas amansa
amansa como dor de barriga
em barriga de branco
sem papel e sem banheiro.

A espera não faz justiça.

justiça faz quem não espera
e caga sem latrina e sem papel

e sem medo de se limpar com o dedo.







39

Não
não me dê a mão com palavras

deixe que nossas mãos
se encontrem
se conheçam
se afaguem

para quando
nossas ideias opostas
em nossa voz se encontrarem
palavras não mais nos separem

e que prevaleça sempre
a união ao nosso desacordo.

Não
amor não se faz com palavras

eu escuto um grito
insistente
marcado em meu rosto
e não falo
e grito de mim
para mim
toda dor em meu peito
e me calo.

Não
não me dê a mão com palavras

deixe haver sempre
essa paz em nosso olhar
para que nunca nos deixe
o amor que temos em nossas mãos.



40

Já fui alegre
eu me lembro
e quantas saudades ficaram daquele tempo
em que eu não pensava
que existe pensar no tempo

hoje sou
que às vezes tem
nascimento, vida e morte
atados a um só momento

hoje eu sou
quem trocou alegria
por um sentimento muito vago
indefinido.

o que ouço logo esqueço
o que falo já foi dito.

fui eu quem se desfez de mim
assim por inteiro

fui eu, eu sei
mas não acredito.







41

Quero andar calmamente
como se tivesse esperança

quero ser tão somente
o que sou na lembrança

quero ter o poder infinito
do homem comum

e reinar livremente
como os mistérios do mar
sobre a ciência da terra

e morrer simplesmente
como espuma das ondas
afundando na areia

e ficar para sempre
como um rochedo qualquer
esquecido e presente

quero ser como gente.






42

e continuo sendo contra
os que pensam
que o povo deve ser de César
sacrificar-se por César
flagelar-se por César.

César tinha um império
um exército e um filho
Brutus.

eu tenho vergonha
uma mulher e uma filha
Maria.

e meu país não é Roma.


                    Aos tiraninhos de colônia.






43       MARIA

enquanto eu estiver fora
sentirei a sua lembrança
que amarra meu pensamento
ao inesquecível

o tempo voa e foge

e à noite
quando eu voltar
o tempo virá pousar em nós
até você dormir.




44

Maria você tanto me ama
que dormindo assim em seu berço
eu sinto que não mereço
tanto amor que vem de você.

E quando você chora
e logo se cala Maria
será que você desconfia
da minha vontade de chorar ?

Mas para você nunca saber
(pelo menos por agora)
canto e brinco com você
meu sorriso de mentira

e escondo na falsa alegria
no vazio de minha agonia
tudo que lhe quero dar e não tenho

no quadro que não desenho
um mundo feliz
que se perdeu.






45

Amanheceu
velho e sozinho
eu era ainda criança.

Dependente
gente prematura
simplesmente velho e criança.





46      ARAGUAIA, ADEUS.

Repicam sinos caprichosamente
à luz difusa da pálida alvorada
bravo sangue sorrateiramente
inunda a lama úmida e apagada

da bruma acesa o silêncio vaga
e assoma o espaço, os campos de batalhas
pássaros tangem trapos coloridos
e vão tecer no alto ninhos de mortalhas.

ainda ouço o eco de seu pisar vibrante
velhos e jovens graves que por aqui passaram
romperam a noite em facho como um rio aceso

pela floresta escura onde se apagaram
para mostrar que honra é um valor eterno
como eterno é o medo dos que nunca lutaram.





47
AMARELO DE FOME, VERDE DE MEDO.
                                             (Mateus - 3,10.)

Soldados são homens desarmados

homens fardados
matando pelo poder
para os senhores dos fardados
não são soldados

são árvores letais
transplantadas da terra
para torrões de lama

são o lixo que flutua
rio abaixo

diante da lama e do lixo
o povo desunido
se cala
de fome e de medo

e engole lama e lixo

mas o silêncio
da fome e do medo
não haverá de  estancar o tempo
que muda o homem
da água ao sal

como o suor ao vento

e o sal
é o sinal dos tempos

já o machado está posto
à raiz das árvores.






48

Não receberei comendas
de oficiais barrigudos
nem honrarei bandeira ultrajada

desfraldada e recolhida
por porteiros de quartéis.

Darei medalhas
a companheiros invencíveis

minha mão
a guerrilheiros mutilados

e minha vida
em troca do momento
que unirá os operários
sob a mesma bandeira.





49     RIO ARAGUAIA

Cada pessoa deixa
por onde passa
as marcas da própria vida
nos restos do que viveu.

dentro da selva
deixei um rio
no espelho do rio
deixei o céu

migalhas de pão
sobre uma pedra
e a pedra molhada de mel.






50      PÃO E CIRCO

o pão
não nos dão

nós fazemos
mas não comemos

mas temos circo
o nosso circo
são vocês

o palhaço
(a sua plateia)
somos nós

porque somos
os eleitores de vocês.

Mas circo
nós não somos

o nosso circo
são vocês

e nesse circo
de reino ocupado
o jogo é fazer lei
o dono apita de fora
a plateia sorri e chora
o bobo da corte é o rei.





51

Hoje meu velho
morreu de fome

o choro e a fome
se espalharam pelo chão

as estrelas de mentira
fizeram uma constelação

quatro estrelas de almanaque

três estrelas de campanha

e minha estrela
que está sozinha
nesse céu de papelão.




52         IPIAÚ - JEQUIÉ

Ipiaú - Jequié
o ônibus intermunicipal
corre sobre a tira negra
esburacada
do asfalto rodoviário
32 passageiros sentados
100 passageiros em pé.

adormeço na cadeira 17
nos solavancos
nos aconchegos
nos escarros
e na tosse ininterrupta da mulher.

Sonho
levo mensagem de convocação
aos combatentes do sertão

o vento e o sereno
atravessam janelas abertas
e nada mais

ao longo dos cacaueiros floridos
lírios e jasmins
dos charcos
perfumam o vento
nos jardins dos senhores rurais.

Ipiaú - Jequié
ônibus de gente
que teima com a vida
não têm terra
não têm morada
não têm comida

mas um dia
a revolução chegará
e chamará
os que viajam sentados
os que morrem calados
e todos que vivem curvados
para morrerem de pé.





53       NÚMEROS

Quatro camisas de meia
sobre cinco calções rasgados
catam comida no lixo
no pátio do supermercado

cinco pares de pés
com sete sandálias furadas
debaixo de muita porrada
fogem furando o cerco
de oito terroristas armados

cinco pivetes feridos
entram no ônibus lotado
ficam de parte “nas boca”
de olho vidrado de cola
de olho grudado no vidro
que fecha a janela do fundo
e bloqueia a porta de trás

cinco de nossas crianças
de olho na gente e na porta de trás.





54    DODÓ

Era tão só
antes de você
eu nada tinha

agora
tenho a noite
e tenho a lua

dentro dessa noite
que é tão minha
mora minha saudade
que é tão sua.






55      DODOZINHA

Quando você partiu
bem longe do porto
senti o cheiro
da fumaça de seu navio

e você sabia
que sentindo o cheiro do mar
(o meu cheiro)
no sopro da maresia

você me sentia.






 56

Tenho
a pureza da vida
no meu corpo fechado

Trago
uma fonte de amor
e não sou encontrado

Quando meu corpo
sensível ao prazer
goza
eu estremeço e me calo

A minha alma
quando tentada
cede
e se suja de branco.

             21.01 81.




57

vamos andar
gastar o tempo andando
e trabalhar

vamos andar
demora tanto chegar
mas ainda é tempo

vamos seguir
nada nos custa caminhar
vamos seguir

e ao morrer
vamos saber
que gastar o tempo
caminhando e trabalhando por aqui
foi viver.





58

O que me prende aqui ?
o que será essa força
que me força
a repetir a marcha ?




“Vós não recebestes um espírito de escravos, para voltar a ter medo.”
                                                                                     (Rm. 8, 14)
                                       






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